Assisti a um documentário sobre uma menina na Índia que nasceu com dois pares de braços e dois pares de pernas. As pessoas da aldeia onde ela nasceu a reverenciaram imediatamente pois acreditaram que a menina era a reencarnação da deusa Lakshmi, que também possui oito membros. Mas aí apareceu o médico médico ocidental para dizer que não, que a menina não era deusa coisa nenhuma, era deficiente e poderia ter uma vida normal. Cá entre nós, a maneira dos indianos de lidar com as diferenças é muito melhor do que a nossa.
Mas aparece o médico ocidental. E o médico ocidental é todo cheio de conceitos para dar a criança uma vida normal. Penso em Foucault se contorcendo todo na tumba. Há mais de 30 anos ele já falava do uso das ciências, em especial da medicina, para tornar todo mundo são, produtivo e igual. Mas sempre tem um pra cantar as maravilhas das ciências. E aí falam de tornar a sua casa segura, sua comida segura, seu modo de vida seguro porque afinal, se você fizer tudo direitinho e seguir as palavras de ordem do médico e da mídia será premiado com uma vida longa e “normal”.
Então não fume, não foda demais, beba socialmente, controle seu peso, faça exercícios regularmente, não durma demais ou de menos, esterilize o ambiente em que você vive, blablablá. Se fizer tudo isso talvez você consiga prolongar a vida além dos limites da própria vida e quem sabe, se escapar de morrer de infarto ou câncer você pode passar dos 80 e viver mais uma década na companhia do Parkinson ou Alzheimer. Meu amigo tem um avô que completou 90 anos mês passado, ainda forte, são e ativo. Se for assim vale a pena viver tanto. Mas quantos têm essa sorte?
Ah, não me fale do progressos da ciência! Não tente me convencer que é vida o que tem a minha avó, que aos 80 e poucos não anda, não fala, não vai ao banheiro sozinha e não reconhece mais ninguém. Não tente me convencer que é vida passar por todo tipo de mutilação para continuar vivo porque viver é algo que não está nas mãos dos médicos nem de nós mesmos. Não me diga que é bom adiar o inevitável. Não me fale das vantagens do parto cesariano ou do bem que a cirurgia plástica pode fazer por você. Eu não quero saber.
Ontem eu vi no noticiário um famoso cantor que vai entoar o samba-enredo de sua escola neste carnaval. Ele está com câncer, no meio do tratamento, careca. Mas estava vivo. Não vivo do jeito que as ciências querem nos manter. Ele estava cheio de potência de vida e de alegria e não ia perder o carnaval mesmo com os efeitos da quimioterapia no corpo – e pra quem não sabe a quimioterapia derruba o mais forte dos homens. É isso que as ciências ainda não nos ensinaram: a viver com alegria e arte. As ciências só nos ensinaram a manter o organismo, não a vida. Eles até ensaiaram criando os remedinhos, alegria encapsulada e artificial. Mas se for pra se alegrar sob o efeito das drogas é melhor usar aquelas que médico nenhum receita.
Certa vez presenciei um minidebate entre dois amigos. Um escreveu na lousa “Mais poetas, menos cientistas”, ao que o outro respondeu “Mais cientistas poetas e mais poetas cientistas”. É com isso que eu concordo, é disso que precisamos. De uma ciência que leve em consideração a vida e de uma vida que se beneficie da ciência sem se tornar obediente cego e estupido. Uma vida menos ordinária.